Acredito que toda doença com a complexidade do APLV tem o poder de abrir portas para muita informação desencontrada.
Muitas vezes os pais chegam trazendo informações que parecem saídas de uma brincadeira antiga conhecida como telefone sem fio, onde a história inicial nunca é igual a história final.
Muitas vezes estas informações desencontradas são inocentes, mas muitas vezes elas impactam a vida da família.
E é sobre polêmica "Alergia alimentar e Transtorno do espectro autista: existe relação ? " que vamos tratar aqui.
A interação entre cérebro e intestino vem sendo estudada desde o século XIX.Sabemos que esta interação é complexa e envolve os sistemas neurológicos, endócrino e imunológico. Mais recentemente, um outro personagem tem entrado nos holofotes do eixo intestino-cérebro: o microbioma. Postula-se que uma flora intestinal desregulada (em disbiose) pode desiquilibrar este eixo.
A microbiota têm sido implicada na gênese de muitas doenças inflamatórias, alérgicas, autoimunes e até de câncer. A partir deste conhecimento, passou-se a falar de eixo microbiota-intestino-cérebro. E recentemente, se acredita que seja um eixo de via de mão dupla: cérebro afeta intestino, intestino afeta cérebro.
Baseado nestes conhecimentos recentes, estudos tem sido desenvolvidos parar tentar elucidar se doenças neuro-degenerativas, transtorno de ansiedade, depressão e transtorno do espectro autista (TEA) podem ter na sua gênese alterações da microbiota intestinal e processo inflamatório.
Por associação livre começou-se a especular: se disbiose pode se associar a alergias alimentares e se disbiose pode se associar a transtorno do espectro autista, então alergia pode levar a transtorno do espectro autista. Quem iniciou essa livre associação subestimou ambos: a ciência e a complexidade do transtorno do espectro autista.
Frente a confusão que esta afirmação causou, a Sociedade Brasileira de Pediatria (assim como a americana e assim como a europeia vieram a público se pronunciar)
Primeiro, o que é Transtorno do Espectro autista (TEA)
O TEA é composto por um grupo de condições que afetam o desenvolvimento neurológico e nos quais há sintomas que se manifestam precocemente e que são caracterizados por: a) defi ciências na comunicação e interação social e b) padrões restritivos e repetitivos de interesses, comportamento e atividades. Não se sabe o que causa o TEA, mas se acredita que seja uma combinação de fatores que ainda não estão bem estudados nem bem esclarecidos.
A alimentação no TEA tem sido muito estudada pois estes pacientes tem muitos sintomas intestinais como constipação, diarreia, distensão abdominal, dor abdominal. Muitos além destes sintomas ainda apresentam seletividade alimentar, recusa alimentar, disfagia. Com tantas alterações de trato gastro intestinal, fica fácil entender porque entre 50 a 83% dos pacientes com TEA passem por dietas a saber: restrição de glúten, restrição de leite, restrição de aditivos alimentares e dieta oligoalergênicas.
As dietas hoje mais executadas em TEA são a retirada de glúten e de leite. Como pais de alguns pacientes referiam melhora, a ciência foi estudar esta restrição. Foi procurado todos os atrigos de 1970 a 2013 que tratavam sobre o tema. Foram 24 artigos adequados para análise, sendo que aqueles que apresentavam efeitos positivos foram considerados de baixa qualidade de evidências e os negativos, de alta qualidade de evidências. Dessa forma, os autores concluem que as evidências que suportam uma dieta sem glúten e/ou sem caseína para o espectro autista são limitados e de baixa qualidade.Até que os resultados desse tipo de exclusão dietética sejam melhor definidos, os pacientes com TEA só devem ser submetidos a dietas de exclusão de glúten e/ou caseína caso haja diagnóstico de doença que justifique, como no caso da doença celíaca.
Os cientistas também discutem o papel da dieta sem gluten e/ou sem caseína no tratamento do TEA. Os autores apontam que as proteínas do glúten e da caseína possuem estrutura molecular similar e são metabolizadas para gluteomorfina e casomorfina, substâncias que se ligariam aos receptores opioides no SNC e mimetizariam os efeitos dos opioides do cérebro com aumento da atividade no sistema opioide endógeno, de encontro a uma das teorias da TEA que seria a “Teoria do excesso de opioides”. No entanto, até o presente momento, não foi comprovada a maior permeabilidade do intestino delgado a esses compostos intestinais, que se acreditava corroborar com essa hipótese.
Nenhuma pesquisa até o presente momento aponta que haja uma relação entre alergia alimentar e a gênese do TEA. Embora esta população tenha uma incidência elevada de alergias (pulmonares, cutâneas etc), não há estudos que dizem que foi a alergia (seja ela de que tipo for) a gênese do TEA.
Portanto, não está correto a afirmação que muitos pais receberam deste telefone sem fio de que um alérgico alimentar pode vir a desenvolver TEA. Não há esta correlação
Um abraço, Dra. Mirella
FONTE: Alergia alimentar e Transtorno do espectro autista: existe relação? Manual da Sociedade Brasileira de Pediatria.